Pular para o conteúdo principal

O complexo da maturidade (ou Depois de tudo que eu fiz por você, que você não pediu)


Por isso é tão importante dar nome aos seus sentimentos: é a única forma de não se render a eles. É a mesma lógica usada em “Invocação do Mal 2” – se você descobrir o nome do demônio, é possível enfrentá-lo e finalmente baní-lo. Mas estou me adiantando aqui; do que estávamos falando mesmo?


Bom, é difícil dizer. Da última vez em que ouviu falar de mim, eu não estava tão ocupado ajudando a resgatar sentimentos alheios – longe disso, estava mais preocupado com os meus. Mas é isso que acontece quando você aceita que virar adulto não é uma escolha, é uma sentença perpétua à qual você está inevitavelmente condenado – não que isso seja de todo mal. Ser adulto tem suas vantagens como, por exemplo, dizer “não” sem qualquer sufixo ou justificativa. 


Também é possível circular pra lá e pra cá a qualquer momento, desde que esteja dentro dos horários de atendimento. E, claro, somos o único público que garante sua participação em eventos, sejam eles pagos (16ª Feira de Queijos Importados de Liechtenstein) ou obrigatórios (eleições municipais), porque não queremos perder o investimento que já fizemos (meia-entrada falsa no caso da feira, direito de reclamar à vontade por quatro anos no caso das eleições).


Mas, voltando aos sentimentos – o que seria irônico se não fosse necessário – e aqui me refiro àqueles além da fome ou indignação responsáveis por movimentar grande parte da economia. Não. Estou falando daqueles que sequer lembramos que existem, principalmente o que costumo chamar de Complexo da Maturidade – e caso nunca tenha ouvido falar nisso, posso garantir que não irá gostar.


Complexo da Maturidade é a ideia de que não basta apenas ser adulto de um ponto de vista evolutivo – é preciso agir de acordo, mesmo quando você não queira. E quando digo que não é algo que agrade a todos, é porque quando se entende que é necessário assumir a responsabilidade por si mesmo, isso se torna um caminho sem volta. E não há nada que incomode um jovem adulto (ou um adulto em negação) tanto quanto ouvir que algo é mesmo problema dele e de mais ninguém.


Há ainda quem interprete a vida sob as lentes da arte da relativização, numa eterna busca por subterfúgios e brechas que o permitam ser absolvido da obrigação de assumir a si mesmo e seus BOs. Essas pessoas costumam ser as mesmas que entoam pérolas do tipo “como você pode fazer isso comigo? depois de tudo que eu fiz por você!”, desesperadamente tentando distorcer a realidade num paradoxo de tempo-espaço-responsabilidade.


Eis aqui o Complexo da Maturidade: você acredita que pode fazer o que quiser, desde que isso não implique em qualquer consequência para você. Caso suas ações de fato acarretem em circunstâncias que fogem da sua visão (limitada) de mundo, então sua saída de emergência envolve terceirizar sua responsabilidade a qualquer pessoa ou situação supostamente tendenciosa que a levou a fazer isso – anulando totalmente sua capacidade de tomar decisões, pensar e agir por si mesmo. 


Toda decisão inevitavelmente provoca uma nova dobra no tempo-espaço – mas em vez de multiversos, só o que temos são consequências impensadas e efeitos colaterais com os quais precisamos lidar. É o que torna uma defesa do tipo “depois de tudo que eu fiz por você” tão imatura: ninguém pediu, foi você quem decidiu fazer por si mesmo, acreditando que a necessidade do outro precisava ser atendida por você. Vez por outra pode até ser que o outro lhe peça algo, mas a decisão de fazer ou não continua sob sua responsabilidade – e não há legítima defesa no mundo capaz de absolver o livre arbítrio. 


Enfim, por isso é tão importante dar nome aos seus sentimentos: você se livra de demônios (reais ou imaginários), garante seu direito de ir e vir para onde quiser, e assume que seja lá quem queira ser, é problema/privilégio seu. Porque depois de tudo que fizer por si mesmo, a última coisa que precisa é lidar com outra pessoa querendo levar o crédito.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Os 5 estágios do Roacutan

            Olá. Meu nome é Igor Costa Moresca e eu não sou um alcoólatra. Muito pelo contrário, sou um apreciador, um namorador, um profissional em se tratando de bebidas. Sem preconceito, horário ou frescura com absolutamente nenhuma delas, acredito que existe sim o paraíso, e acredito que o harém particular que está reservado para mim certamente tem open bar. Já tive bebidas de todas as cores, de várias idades, de muitos amores, assim como todas as ressacas que eram possíveis de se tirar delas. Mas todo esse amor, essa dedicação e essas dores de cabeça há muito deixaram de fazer parte do meu dia a dia, tudo por uma causa maior. Até mesmo maior do que churrascos de aniversário, camarotes com bebida liberada e brindes à meia noite depois de um dia difícil. Maior do que o meu gosto pelos drinques, coquetéis e chopes, eu optei por mergulhar de cabeça numa tentativa de aprimorar a mim mesmo, em vês de continuar me afogando na mesmisse da minha melancolia existencial.            

A girafa e o chacal

Melhor do que os ensinamentos propostos por pensadores contemporâneos são as metáforas que eles usam para garantir que o que querem dizer seja mesmo absorvido. Não é à toa que, ao conceituar a importância da empatia dentro dos processos de comunicação não violenta, Marshall Rosenberg destacou as figuras da girafa e do chacal . Somos animais com tendências ambivalentes – logo, nada mais coerente do que sermos tratados como tal.  De acordo com Marshall, as girafas possuem o maior coração entre todos os mamíferos terrestre. O tamanho faz jus à sua força, superior 43 vezes a de um ser humano, necessária para bombear sangue por toda a extensão do seu pescoço até a cabeça. Como se sua visão privilegiada do horizonte não fosse evidente o suficiente, o animal é duplamente abençoado pela figura de linguagem: seu olhar é tão profundo quanto seus sentimentos.  Enquanto isso, o chacal opera primordialmente pelos impulsos violentos, julgando constantemente cada aspecto do ambiente ao seu re

Wile E.: o gênio, o mito, o coiote

Aí todo mundo no Facebook mudou o avatar para a imagem de algum desenho e eu não consegui achar mais ninguém, mas depois de um tempo eu resolvi brincar também. O clima de celebração do dia das crianças invadiu as redes sociais de tal maneira que todos nós acabamos tendo vários flashbacks com os desenhos de nossos colegas, dos programas que costumávamos assistir anos atrás quando éramos crianças e decorar o nome dos 150 pokemons era nosso único dever. E para ficar mais interativo, cada um mudou a imagem para um desenho com qual mais se identifica, e quando a minha vez chegou, não tive dúvidas para escolher nenhum outro senão meu ídolo de ontem, de hoje, e de sempre: o senhor Wile E. Coiote. Criado em 1948 como mais um integrante da família Looney Tunes, Wile foi imortalizado pelo apelido e pela fama de fracassado em sua meta de vida: pegar o Papa Léguas. Através de seu suposto intelecto superior e um acesso ilimitado ao arsenal de arapucas fornecidas pela companhia ACME, Wile tento